segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

 

ORAÇÃO DA CABRA PRETA

                       Nivaldo Melo

 

1

No meu tempo de criança

Ouvíamos muitas histórias,

Contada por minha avó

Durante horas e horas;

Muitas histórias de areias

Umas bonitas outras feias,

Que eu guardo na memória,

2

Me lembro como se hoje

Ouvisse o fato narrado

Eles nos deixavam as vezes

De certa forma marcados

Isso dependia então

Da forma e entonação

Que era pra nós passado.

3

A minha avó era mestra

Na forma dela contar

Estórias da carochinha

Que era a mais popular

Contava histórias de ação

Como de assombração

Que dava pra arrepiar.

4

Numa noite muito escuras

Quando a lua está nova

Ela conta suas estória

Para nos pro só a prova

Depois que ouvimos tudo

Saímos dali quase mudo

Até com medo da alcova.

5

Naquela noite medonha

Vovó chegou diferente

Os cabelos desgrenhados

Há dias não via pente

Com um aspecto bisonho

Era uma bruxa de sonho

Fazendo medo pra gente.

6

Quando chegou foi falando

Quero silencio total

O caso que vou contar

Não foi um caso banal

Foi um caso de terror

Até hoje causa horror

Quando lembro passo mal.

7

Aconteceu numa sexta

Dia treze de agosto

Na mata aqui da cidade

Parece que foi encosto

Trazido por um despacho

Daquele que cabra macho

Quando passa vira o rosto.

8

Nele tinha muitas coisas:

Uma quartinha sem tampa

Três penas de galinha preta,

Rastro de uma mula manca,

Uma pedra de carbureto,

O chinelo de um preto,

Uma foto sem estampa.

9

Tinha uma xícara sem asa

Um prato todo quebrado

Cabresto da vaca mocha

O chifre de um veado

Uma pedra acesa em brasa,

Poeira de uma casa

E um charuto amassado.

10

Uma sola de sapato,

Uma garrafa de cana

Um bilhete escrito assim

Você pensa que me engana,

O cabo de um pincel

Um pão melado de mal

E três cascas de banana.

11

Um pedaço de serrote,

Três milhos pra mungunzá,

Dentes de um velho garfo,

Dentadura de um preá,

Pacote com uma bolacha,

Um tatu sem carapaça,

Um chifre do boi tatá.

12

Um cachimbo sem o fumo,

Caixa de fosforo ao lado,

Um maço de vela preta,

Cinza de fogo apagado,

Tinha um caroço de pinha,

O pé esquerdo de galinha,

Um vidro escrito Encantado.

13

Uma cabeça de alho,

As tiras de um chinelo,

Um tapete de veludo,

Em cima algo amarelo,

Tinha uma colher de pau,

Mamadeira com mingau,

O cabo de um martelo.

14

Chocalho de cascavel,

Um laço de fita vermelha,

Mais um laço de cor azul,

Um outro de cor de telha.

Tinha um sino sem badalo.

Também um bico de galo,

O ferrão de uma abelha.

15

Um pouco de mel de furo

Um pedaço de carvão

Uma cocada mordida,

A cabeça de um zangão,

Bunda de uma tanajura,

Uma cuia com verdura,

O bico de um pião.

16

Moeda de um centavo,

Uma cadeira sem texto,

A touca de um menino

Nascido em ano bissexto,

Cavalo de um carrossel,

Pedra verde de um anel,

Um cipó de fazer cesto.

17

Tudo em um recipiente

Parecido um alguidal

Não era feito de barro,

Uma estrutura de pau,

Feita de pau pereira,

Desse que vende na feira

Roubado de um quintal.

18

Nesse momento a vovó

Perguntou qual era a hora,

Vinte e três cinquenta e oito,

Quem respondeu foi Aurora,

Então a vó deu um pulo

E saiu de seu casulo

Transformou-se em caipora.

19

Todo mundo levantou-se

Queriam todos correr,

Então vovó da um gritou,

Quem sair pode morrer,

Que fiquem todos sentados,

Senão vão ser devorados,

Pelo saci Pererê.

20

Fez-se um silencio danado

Parecia um funeral,

Vovó pega seu cachimbo

Tira do bolso um dedal,

Põe no indicador direito,

E disse: peço respeito

Quem falar vai levar pau.

21

Alguém levantou o dedo

Pedindo para falar,

Vovó disse; fiquem calmos

O que eu vou lhes contar,

É caso de assombração

Quem sofrer do coração

Saia logo e vá cagar.

22

Um olhava para o outro

Todo mundo assustado,

História de assombração,

Ela nunca tinha contado.

Estávamos com muito medo

Sem saber qual o enredo

Que ela tinha preparado,

23

“Tudo foi na sexta-feira

Treze do mês de agosto

Bem no caminho da mata

Que o despacho tava exposto

Podia ver quem quiser

Homem, menino, mulher,

Só não podia preposto.

24

Quando o relógio da igreja

Badalava a meia noite

Se ouve uma explosão

E veio um vento de açoite

Na mata se ouve apito

Algo de muito esquisito

Se tem, coragem, acoite.

25

Aí começou o barulho

Vindo do meio da mata

Em direção a cidade

Feito miado de gata

Na hora que faz amor

É um grito sofredor

Não é nenhuma uma sonata.

26

Ouviam-se muitos gritos

De gente que está sofrendo

Chegando lá no inferno

Com som de dentes rangendo

O povo se escondeu

Mas o velho padre Pompeu

Ficou na rua, só vendo.

27

Ele olhava para a mata

Pra ver se via alguém

Devagar se aproximava

Por certo não viu ninguém

De onde vem essa voz?

De um povo bem feroz,

Nossa voz vem do além.

28

Então o padre Pompeu

Pôs o seu terço na mão

Pegou sua agua benta

Fez uma roda no chão

Ficou no meio parado

Olhando pra todo lado

Pra ver a assombração.

29

Da mata então aparece

Uma mula sem cabeça

O padre perdeu a noção

Se era quinta ou sexta

Mas ele estava tranquilo

Olhando só para aquilo

Começou a oração.

30

Oh meu santinho Pompeu

Que é o meu protetor

Defenda a nossa cidade

Peço por Nosso senhor

Afaste as almas penadas

Para longe da estrada

Te peço com todo amor.

31

Aí é que apareciam

Coisas de dentro da mata

Veio um pombo sem asa

Seguido por mil baratas

Uma alma transparente

Gritando saiam da frente

Vai começar a bravata.

32

Mas nenhum daqueles seres

Do padre se aproximava

É que aquela agua benta

O velho padre guardava

O que queriam fazer

É ver o padre tremer

Daquele lugar se mandava

33

E o tempo ia passando

Naquela noite sombria

Os gritos vindos da mata

Em todo quanto se ouvia

Gemidos, ranger de dentes

Assombravam toda gente

Antes de amanhecer o dia.

34

Todo aquele alvoroço

Era em torno do vigário

Ele estava protegido

Dentro de seu campanário

Com muita calma rezava

De joelhos implorava

Me tire desse calvário.

35

Aquelas almas penadas

Que saíam lá da mata

Esvoaçavam por cima

Bailando como acrobata

Um gemendo outro gritando

Uns miando outros rosnando

Outros batiam em lata.

36

E o tempo ia passando

Parecendo eternidade

O padre de olhos abertos

Demonstrava só bondade

Alguém resolve ajudar

Gritando; podem parar

Chegou aqui a verdade!

37

O padre Pompeu gritou

Venha aqui pra agua benta

Estão quase desistindo

Lá fora tu não aguenta

Me dê logo sua mão

Vamos fazer oração

Matar as almas agourentas.

38

E quem era o participante?

E não era o sacristão!

Na cidade era famoso

Pelos tipo de oração

E quando o sacristão rezava

Tudo de ruim se afastava

Garanto que até o cão.

39

Os dois começam rezando

O Pai nosso e Ave Maria,

Rezaram o credo ao contrario

Mas nada ali acontecia,

Isso durou meia hora,

Vamos mandar tudo embora,

Vou rezar o que eu queria.

40

Mal acabou de falar

Na mata se ouve um grito,

Abram que estou chegando,

Eu vou deixá-los proscritos,

Vou transformá-los em pó

Vamos ver quem é maior,

Eu vou dar fim ao conflito.

41

Fez-se um tremendo silencio

Em toda aquela galera,

Padre, almas e sacristão

Ficaram só na espera,

Os galhos iam quebrando,

E algo vinha relinchando,

Era a tal da besta fera.

42

Acompanhando a danada

Veio a caipora, o saci,

Quem veio foi o ao-ao

Parecido com um quati,

Curupira, e o boi tatá

Foram só pra comprovar,

Quem é que mandava ali.

43

Foi aquela fumaceira

Enxofre era queimado,

As almas todas gritando,

Não vamos deixar legado,

Acabemos com os dois

Pra nos feijão com arroz,

Vai ficar tudo acabado.

44

Então o sacristão levanta

E começa a velha oração,

Começa rezar baixinho

Ao padre dando a mão,

Era a oração da Cabra preta

A que o diabo faz careta

E cai postado no chão.

45

A oração era assim:

Rezada de frente pra trás,

Pois somente desse jeito

Ela afasta o satanás,

O chamado cramunhão,

Conhecido como cão,

Que é filho do ferrabrás.

46

Quando a oração é feita

Com linhas de traz pra frente,

As almas que são do bem,

É quem protegem a gente,

Veem logo transformar,

Pondo as coisas em seu lugar

Pondo o pé sobre a serpente.

47

Cabra amiga boa minha

Escuro pelo de coberta

Tinhoso e nós de afasta

Muro o contra ele joga

Claridão a volta de traz

Escuridão a com acaba

Puro ar o nós pra traz e

48

Salvadora cabra minha

Conte eu três que antes e

Penadas almas as empurre

Monte dos atrás possível se,

Milagre o esperamos

Acabe se isso que faça

Desmonte despacho o que.

49

Está que tudo junte

Alguidal velho naquele

Puseram lá que coisas as

Mal o nós pra trazem só

Quebranto o logo acabe

Canto desse todo leve

Matagal no jogue e.

50

Mata da esplendor o traga.

Perfume o traga flores das

Almas as todas afaste

Estrume com elas cubra

Encerrar pra agora

Lascar se diabo o mande

Imune povo nosso deixe.

51

Quem primeiro debandou

Foi a mula sem cabeça

A besta fera sai gritando

Quem ficar que obedeça

A reza do sacristão

Tem a força de um canhão

Se me viu; que me esqueça.

52

Foge também o lobisomem,

Curupira com o pé torto

Entra na mata ligeiro,

Cavalgando em seu porco.

As almas fogem voando,

O saci sai se arrastando,

Fingindo que estava morto.

53

As almas que ali voavam

Foram prostradas no chão,

Umas desapareceram,

Outras pediam perdão,

O padre observava

Aquilo que se passava,

Demonstrando emoção.

54

E para complementar,

Ele pega a agua benta,

Joga sobre o despacho

Dizendo vê se aguenta,

Tens que ir lá para traz

Comida do satanás,

De ti ele se alimenta.

55

E durante alguns segundo

Que durou uma eternidade,

Não se ouvia um só pio,

Naquela comunidade.

O padre e o sacristão

Unidos se deram as mãos,

Festejando a liberdade.

56

Aparece o pai da mata

Todo vestido em veludo,

Na mão direita arco e flecha,

E na esquerda um escudo,

Veio num cavalo alado,

E a Cabra preta ao seu lado

Chegava o final de tudo”.

57

Então para demonstrar

Que o caso era verdade,

Vovó mostrando o dedal,

Falou com tranquilidade,

Esse dedal que eu estou,

O pai da mata deixou,

Pra proteger a cidade.

58

Ele entregou para o padre,

E quando o vigário morreu,

Entregaram ao guardião,

Que com ele é quem sofreu,

Agora ele está na mão,

Da filha do sacristão,

Que por acaso sou eu.

59

Alguns pegaram o dedal,

Queriam pô-lo no dedo,

Outros nem chegaram perto,

Porque tremiam de medo,

A vovó toda contente,

Com um sorriso diferente,

Por revelar seu segredo.

60

No local que era a mata,

Construíram um campo santo

A noite quem tem coragem,

Nem passa naquele canto,

Quem passa conta bravata,

Diz que viu o pai da mata,

Naquele local sacrossanto.


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